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quinta-feira, 10 de abril de 2014

Porque é que artigos que revelam dados negativos sobre fármacos não são apresentados?


Nota: as afirmações deste artigo, são da autoria de Ben Goldacre, o médico que escreveu o livro «Farmacêuticas da Treta».

A reboxetina é um fármaco que eu próprio receitei. Como os outros medicamentos não tinham resultado nesse doente em particular, quisemos experimentar qualquer coisa nova. Tinha lido os dados do ensaio antes de escrever a receita e só descobrira testes bem concebidos, imparciais, com resultados esmagadoramente positivos.

A reboxetina era melhor do que o placebo e tão boa como qualquer outro antidepressivo em comparações directas um a um. O seu uso foi aprovado pela MHRA (Medicines and Healthcare products Regulatory Agency), a agência que regula todos os fármacos no Reino Unido.

Todos os anos são receitadas milhões de doses desse fármaco em todo o mundo. A reboxetina era claramente um tratamento seguro e eficaz. O doente e eu discutimos brevemente a evidência e concordámos em que era o tratamento adequado a tentar a seguir. Assinei um pedaço de papel, uma receita, que afirmava que queria que o meu doente tomasse esse fármaco.

No entanto, fomos ambos induzidos em erro. Em Outubro de 2010, um grupo de investigadores conseguiu finalmente juntar todos os ensaios alguma vez realizados sobre a reboxetina. [1]

Num longo processo de investigação — procurando em revistas académicas, mas também solicitando arduamente dados aos fabricantes e recolhendo Documentos provenientes de reguladores —, conseguiram juntar todos os dados, tanto dos ensaios que foram publicados como dos que nunca apareceram em artigos académicos.

O tratamento em conjunto de todos estes dados de ensaios produziu uma imagem chocante. Tinham-se realizado sete ensaios que comparavam a reboxetina com um placebo. Só um, abrangendo 254 doentes, tinha um resultado positivo claro, e foi esse que foi publicado numa revista académica, para ser lido por médicos e investigadores.

Os restantes seis ensaios, abrangendo dez vezes mais doentes, demonstravam todos que a reboxetina não era melhor que um comprimido inerte. Nenhum deles foi publicado. Eu não fazia ideia de que existiam.

Mas as coisas pioraram. Os ensaios que comparavam a reboxetina com outros fármacos produziam uma imagem exactamente idêntica: três pequenos estudos, abrangendo um total de 507 doentes, mostravam que a reboxetina era tão boa como qualquer outro fármaco. Foram todos publicados.

No entanto, dados abrangendo 1657 doentes ficaram por publicar, dados esses que mostravam que os doentes a tomar reboxetina passavam pior do que os que tomavam outra medicação. Como se tudo isto não bastasse, ainda havia os efeitos secundários.

O medicamento fazia boa figura nos ensaios publicados na literatura académica; mas, quando se analisavam os estudos não publicados, verificava-se que os doentes que estavam a tomar reboxetina apresentavam, em comparação com os que tomavam outros medicamentos, maiores probabilidades de sofrer de efeitos secundários, de deixar de tomar o medicamento e de abandonar o ensaio devido a esses efeitos.

Se alguma vez duvidar dos motivos que me levam a ficar furioso com as histórias que conto no livro «Farmacêuticas da Treta» — e juro que, aconteça o que acontecer, me restringirei aos dados e me esforçarei por dar uma imagem imparcial de tudo o que sabemos —, basta-lhe reflectir nesta história.

Fiz tudo o que se esperava que um médico fizesse. Li todos os artigos, apreciei-os criticamente, compreendi-os, discuti-os com o doente e tomámos uma decisão juntos, baseados na evidência. Nos dados publicados, a reboxetina era um medicamento seguro e eficaz. Na realidade, não era melhor do que um placebo, e pior do que isso, fazia mais mal do que bem.

Como médico, após ter pesado toda a evidência, fiz algo que causou dano ao meu doente, simplesmente porque houve dados que não eram lisonjeiros que ficaram por publicar.

Se achar esta situação surpreendente ou escandalosa, estamos apenas no princípio da jornada. Porque ninguém infringiu qualquer lei, a reboxetina ainda é comercializada e o sistema que permitiu que tudo isto acontecesse ainda vigora, para todos os fármacos, em todos os países do mundo.

Os dados negativos estão em falta, para todos os tratamentos, em todos os domínios da Ciência. Os reguladores e os organismos profissionais que deveriam erradicar este tipo de práticas faltaram aos seus compromissos para connosco.

Em poucas páginas, percorreremos a literatura que demonstra tudo isto sem margem para dúvidas, mostrando que o «enviesamento de publicação» — o processo pelo qual os resultados negativos ficam por publicar — é endémico em toda a medicina e em todo o mundo académico, e que os reguladores não fizeram nada contra isto, apesar de décadas de dados que expõem a dimensão do problema.

Mas antes de chegarmos a essa investigação, como preciso que o leitor se dê conta das suas implicações, temos de reflectir sobre a importância dos dados em falta.

A evidência é a única possibilidade que temos de saber se alguma coisa resulta, ou não, em medicina. Progredimos testando coisas, o mais cautelosamente possível, em ensaios comparativos, e reunindo toda a evidência.

Este último passo é crucial: se escondo do leitor metade dos dados, é muito fácil para mim convencê-lo de algo que não é verdade. Se lanço uma moeda cem vezes, por exemplo, mas só o informo das vezes em que saiu caras, posso convencê-lo de que a moeda tem caras nas duas faces.

Mas isso não quer dizer que tenho realmente uma moeda com duas caras: quer dizer que estou a induzi–lo em erro e que o leitor é um tolo por me deixar fazê-lo. É exactamente a situação que toleramos, e sempre tolerámos, em medicina. Os investigadores são livres de realizar todos os ensaios que quiserem e, depois, escolhem os que publicam.

As repercussões desta situação vão muito além dos erros em que os médicos são induzidos sobre os benefícios e danos das intervenções nos doentes, e muito além dos ensaios. A investigação médica não é uma ocupação académica abstracta: é sobre pessoas pelo que, sempre que não publicamos uma peça de investigação, expomos gente real, viva, a sofrimentos desnecessários e evitáveis.

TGN1412

Em Março de 2006, seis voluntários chegaram a um hospital de Londres para participar num ensaio. Era a primeira vez que se ministrava a humanos um novo fármaco chamado TGN1412, e cada um dos voluntários recebia 2000 libras. [2] 

No espaço de uma hora, os seis homens ficaram com dores de cabeça, dores musculares e mal-estar geral. Depois as coisas pioraram: temperaturas altas, agitação, períodos em que se esqueciam de quem eram e de onde estavam. Não tardaram a ter calafrios, rubores, pulsação acelerada, quebra da tensão arterial.

A seguir tudo se precipitou: um entrou em insuficiência respiratória, com os níveis de oxigénio no sangue a diminuírem rapidamente à medida que os pulmões se enchiam de líquido.

Ninguém soube porquê. Outro teve uma brusca quebra de tensão, para apenas 65/40, deixou de respirar em condições e foi levado apressadamente para uma unidade de cuidados intensivos, anestesiado, entubado e ligado a uma máquina de ventilação.

No espaço de um dia, os seis estavam muito mal: líquido nos pulmões, dificuldades respiratórias extremas, rins a funcionarem mal, o sangue a coagular descontroladamente e os glóbulos brancos a desaparecerem.

Os médicos atulharam-nos de tudo o que podiam: esteróides, anti-histamínicos, bloqueadores dos receptores do sistema imunitário. Todos os doentes estavam a ser ventilados nos cuidados intensivos.

Deixaram de produzir urina; foram postos em diálise; o sangue foi substituído, primeiro devagar e depois rapidamente; necessitavam de plasma, de glóbulos vermelhos, de plaquetas. As febres persistiam.

Um contraiu pneumonia. E, depois, o sangue deixou de chegar à periferia. Os dedos das mãos e dos pés ficaram vermelhos, castanhos e depois pretos, começaram a apodrecer e a morrer. Num esforço heróico, escaparam todos, conservando, pelo menos, a vida.

O Departamento de Saúde britânico convocou um grupo de especialistas para tentar compreender o que se passara, tendo surgido duas preocupações. [3]

Em primeiro lugar: podemos impedir a repetição de situações destas? É pura idiotice ministrar, num ensaio pioneiro em humanos, um novo tratamento experimental a todos os participantes ao mesmo tempo se esse tratamento é uma quantidade completamente desconhecida.

Os novos medicamentos devem ser ministrados aos participantes num processo faseado, lentamente, ao longo de um dia. Esta ideia foi acolhida com bastante atenção pelos reguladores e os média.


Não se passou o mesmo no que toca à segunda preocupação: teríamos podido prever este desastre? A TGN1412 é uma molécula que se liga a um receptor chamado CD28 nos glóbulos brancos do sistema imunitário. 

Era um tratamento novo e experimental, o modo como interferia com o sistema imunitário estava mal estudado, e a aplicação de modelos animais era difícil (ao contrário da tensão arterial, por exemplo, porque os sistemas imunitários variam muito consoante as espécies).

Mas, como se descobriu no relatório final, já tinha havido uma experiência com uma intervenção semelhante: só que nunca fora publicada. Um investigador testara a hipótese sem publicar os dados, num estudo que realizou num único sujeito humano dez anos antes, utilizando um anticorpo que se ligava aos receptores CD3, CD2 e CD28.

Os efeitos desse anticorpo assemelhavam-se aos da TGN1412, e o indivíduo sujeito ao teste tinha passado mal.

Mas ninguém teria podido sabê-lo porque esses resultados nunca tinham sido partilhados com a comunidade científica. Permaneceram por publicar, desconhecidos, quando teriam podido ajudar a salvar seis homens de uma provação terrível, destruidora e evitável.

Esse investigador não podia prever os danos específicos para os quais contribuiu, e é difícil responsabilizá-lo individualmente porque funcionava integrado numa cultura académica onde não publicar dados era considerado absolutamente normal. Essa mesma cultura mantém-se nos nossos dias.

O relatório final sobre a TGN1412 concluía que era essencial partilhar os resultados de todos os ensaios pioneiros em humanos: deveriam ser publicados, sem excepção, como rotina. Mas os resultados dos ensaios da fase 1 não eram publicados nessa altura e continuam a não ser publicados hoje.

Em 2009, pela primeira vez, foi publicado um estudo que analisava especificamente quantos desses ensaios pioneiros em humanos são publicados e quantos permanecem escondidos. [4]

Pegaram em todos os ensaios desse tipo aprovados por uma comissão de ética ao longo de um ano. Ao cabo de quatro anos, nove em cada dez permaneciam por publicar; ao cabo de oito anos, quatro em cada cinco ainda não tinham sido publicados.

Em medicina, como veremos vezes sem conta, a investigação não é abstracta: relaciona-se directamente com a vida, a morte, o sofrimento e a dor. Devido a cada um desses estudos não publicados, estamos potencialmente expostos, desnecessariamente, a outra TGN1412.

Nem uma notícia enorme, divulgada internacionalmente, com imagens horríveis de jovens exibindo pés e mãos enegrecidos em camas de hospital, foi suficiente para desencadear qualquer acção, pois a questão dos dados em falta é demasiado complicada para caber numa frase.

Quando não partilhamos resultados de investigações básicas, como o pequeno estudo pioneiro em humanos, expomos pessoas a riscos desnecessários no futuro. Terá este sido um caso extremo? O problema limitar-se-á a novos medicamentos experimentais em pequenos grupos de participantes em fases iniciais de ensaio? Não.

Na década de 1980, os médicos começaram a receitar antiarrítmicos a todos os doentes que tinham tido um ataque cardíaco.

Esta prática fazia imenso sentido no papel: sabíamos que os antiarrítmicos ajudavam a prevenir ritmos cardíacos anormais; também sabíamos que as pessoas que tinham tido um ataque cardíaco apresentavam maiores probabilidades de ter ritmos cardíacos anormais; também sabíamos que era frequente estes ritmos não serem detectados, diagnosticados e tratados.

Receitar antiarrítmicos a toda a gente que tivesse tido um ataque cardíaco era uma medida simples, sensata e preventiva.

Infelizmente, revelou-se que estávamos errados. Esta prática prescritiva, com a melhor das intenções, baseada nos melhores princípios, matou realmente pessoas.

E, como os ataques cardíacos são muito comuns, matou um grande número de pessoas: bem mais de 100.000 morreram desnecessariamente antes de percebermos que o equilíbrio fino entre benefício e risco era completamente diferente para os doentes que não tinham um ritmo cardíaco comprovadamente anormal.

Teria alguém podido prever isto? Infelizmente, sim. Um ensaio realizado em 1980 testou um novo antiarrítmico, a lorcainida, num pequeno número de homens, menos de uma centena, que tinham tido um ataque cardíaco, para ver se era de alguma utilidade.

Nove em quarenta e oito homens que tomaram lorcainida morreram em comparação com um dos quarenta e sete que tomaram placebo. O medicamento estava nas primeiras fases do seu ciclo de desenvolvimento e, pouco depois deste estudo, foi abandonado por razões comerciais.

Como não estava no mercado, ninguém pensou sequer em publicar o ensaio. Os investigadores partiram do princípio de que se tratava de uma idiossincrasia da sua molécula e não pensaram mais nisso.

Se tivessem publicado o estudo, teríamos sido muito mais cuidadosos no que toca a experimentar outro antiarrítmico em pessoas com ataques cardíacos, e o fenomenal número de óbitos (mais de 100.000 pessoas que morreram prematuramente) teria podido ser travado mais cedo.

Mais de uma década depois, os investigadores publicaram finalmente os resultados, com um mea culpa, reconhecendo os danos que tinham causado por não os terem partilhado mais cedo:

“Quando realizámos o nosso estudo em 1980, pensámos que o aumento da taxa de mortalidade verificada no grupo que estava a tomar lorcainida se devia ao acaso.

O desenvolvimento da lorcainida foi abandonado por razões comerciais, pelo que este estudo nunca foi publicado; esta situação constitui presentemente um bom exemplo de «enviesamento de publicação». Os resultados aqui descritos teriam podido fornecer um aviso prévio de problemas futuros.” [5]

Como veremos noutros artigos, este problema dos dados não publicados está generalizado na medicina e, na verdade, em todo o mundo académico, embora a escala do problema, e os danos que causa, tenham sido documentados sem deixar margem para dúvidas.

Veremos histórias sobre investigação básica do cancro, Tamiflu, medicamentos contra o colesterol, contra a obesidade, antidepressivos e muitos mais, com provas que vão desde os primórdios da medicina até aos dias de hoje, e dados que continuam a ser ocultados, neste preciso momento, sobre fármacos amplamente utilizados que muitos dos leitores terão tomado esta manhã.

Veremos também como os reguladores e os organismos académicos se esquivaram repetidas vezes a abordar o problema.

Como os investigadores usufruem da liberdade de enterrar os resultados que quiserem, os doentes estão expostos a danos a uma escala aterradora, em toda a medicina, desde a investigação à prática clínica. Os médicos podem não ter nenhuma ideia dos verdadeiros efeitos dos tratamentos que prescrevem.

Será que este medicamento resulta melhor ou será que estou apenas privado de metade dos dados? Ninguém sabe. Será que este medicamento dispendioso vale o dinheiro que custa ou terão os dados sido manipulados? Ninguém sabe. Este medicamento matará o doente? Há provas de que é perigoso? Ninguém sabe.

É estranho que esta situação surja na medicina, uma disciplina onde se parte do princípio de que tudo se baseia na evidência e onde a prática clínica do dia-a-dia se entrelaça com a ansiedade médico-legal.

Num dos domínios mais regulados da conduta humana, tirámos os olhos da bola e permitimos que a evidência que orienta a prática fosse poluída e distorcida. Parece inimaginável. Veremos até que ponto este problema é profundo.

Notas:

[1] Eyding D, Leigemann M, Grouven U, Harter M, Kromp M, Kaiser T, et al. «Reboxetine for acute treatment of major depression: systematic review and meta-analysis of published and unpublished placebo and selective serotonin reuptake inhibitor controlled trials». BMJ. 12 de Outubro de 2010; 341: c4737-c4737.

[2] Suntharalingam G, Perry MR, Ward S, Brett SJ, Castello-Cortes A, Bruner MD, et al. «Cytokine storm in a phase 1 trial of the anti-CD28 monoclonal antibody TGN1412». N. Engl. J. Med. 7 de Setembro de 2006; 355(10): 1018-28.

[3] Expert Group on Phase One Clinical Trials: Final report [Internet], 2006 [citado em 5 de Abril de 2012]. Disponível em:

http://www.dh.gov.uk /en/Publicationsandstatistics/Publications/PublicationsPolicyandGuidance/D H_063117

[4] Decullier E, Chan A-W, Chapuis F. «Inadequate Dissemination of Phase I Trials: A Retrospective Cohort Study». PLoSMed. 17 de Fevereiro de 2009; 6(2): el000034.

[5] Cowley AJ, Skene A, Stainer K, Hampton JR. «The effect of lorcai-nide on arrhytmias and survival in patients with acute myocardial infarction: an example of publication bias». International Journal of Cardiology. 1993; 40(2): 161-6. Iain Chalmers foi o primeiro a apresentar a TGN1412 e os antiarrítmicos como exemplos dos danos causados quando os primeiros ensaios individuais não são publicados. São os melhores exemplos deste problema, mas não devemos pensar que são invulgares: os dados quantitativos mostram que são apenas dois entre muitíssimos outros casos do mesmo tipo.

Fontes: Livro: «Farmacêuticas da Treta» de Ben Goldacre - Paradigma da Matrix

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